Uma dessas curiosidades ditas
dos poetas é que João Cabral de Melo Neto não gostava de música. Nada mais
estranho para quem conhece as composições de Chico Buarque de Holanda sobre
seus poemas. Caetano, numa de suas canções, diz gostar da “música da poesia de
um certo João que não gostava de música”. Destarte, Chico e Caetano (sempre
eles!) revelam o quanto musical é o texto poético cabralino, a despeito de
poder o artista, conscientemente, não se dá conta disso. Semelhante resultado
conseguiu o cineasta baiano André Luiz de Oliveira, numa de suas investidas
como compositor de música popular, com a poesia de Fernando Pessoa, embora
provavelmente ninguém duvidasse da musicalidade intrínseca ao texto pessoano,
principalmente seu autor. Entre as composições de André, destaca-se a música
feita para o poema épico A Última Nau, peça do singular livro Mensagem, a qual
consegue captar o “clima” do texto.
Mas qual seria, então, o
“clima” de A Última Nau? Se permitíssemos usar uma linguagem bíblica, em vez de
uma terminologia acadêmica, diríamos que o poema é um texto
apocalíptico-messiânico. Na Academia, provavelmente diríamos tratar-se de um
poema moderno que aborda o mito sebastianista. No entanto, independentemente da
linguagem adotada, o poema exemplifica o aforismo pessoano: “o mito é o nada
que é tudo”. É o poeta, para Pessoa, um criador de mitos. O mito como elemento
de (re)significacão da realidade, como explicação primordial, como via de
contato com as divindades que determinam o destino dos homens. Pessoa faz,
então, como se fez com o inofensivo filho de carpinteiro que pregava na
Galiléia: tornou D. Sebastião numa figura maior do que efetivamente era,
alçando-o como um redentor ou restaurador da glória de Portugal. Nos
evangelhos, Cristo assume esse papel em relação aos eleitos. O homem histórico
Jesus passa a mito no momento em que parte, envolto em mistério, com a promessa
de voltar: “Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais; mas vós me vereis,
porque eu vivo, e vós vivereis.” (JO 14:19); “Não vos deixarei órfãos; voltarei
a vós” (JO 14:18). Em A Última Nau, D. Sebastião também parte, “entre choros de
anciã e de presago” e “mistério”:
Levando a bordo EI-Rei Dom Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto, o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de anciã e de presago
Mystério.
O D. Sebastião histórico sai
de cena para dar lugar ao D. Sebastião mítico, criado por Fernando Pessoa, o
qual conduziria a nação portuguesa para um espiritual Quinto Império. Daí o
personagem ser cada vez mais envolvido em mistério:
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Volverá da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Como se pode perceber com a
leitura da estrofe acima, o eu-lírico se transmuta numa espécie de profeta,
capaz de contemplar a projeção do futuro, o “sonho escuro e breve”. Isso o
assemelha ao evangelista João, autor das Revelações, o qual prenuncia o fim
glorioso para os eleitos: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até
mesmo aqueles que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão
sobre ele. Sim. Amém.” (AP 1:7) Todas as tribos, menos os escolhidos. Em
relação a esses, no Apocalipse se lê que “Ele enxugará de seus olhos toda
lágrima; e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem lamento, nem dor;
porque já as primeiras coisas são passadas.” (AP 21:4). Por isso a confiança do
eu lírico:
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minh'alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
O poema, como dissemos,
assume um ar escatológico, apocalíptico. D. Sebastião é uma espécie de Cristo,
o esperado, o encoberto. A música feita por André Luiz de Oliveira, os arranjos
produzidos se harmonizam com esse ar escatológico. O som dos instrumentos
parece sugerir a própria imagem da nau de D. Sebastião surgindo no mar sem
“tempo ou 'spaço”. Eles surgem de maneira grandiosa, desde as primeiras notas,
como se estivessem a anunciar um evento épico. A voz “cavernosa” de Zé Ramalho
contribui muito para isso. O compositor paraibano, com seu timbre grave e
único, transmite essa gravidade para a composição de André Luiz de Oliveira.
Assim como Elis Regina disse que se Deus falasse seria com a voz de Milton
Nascimento, é possível dizermos que se o Apocalipse fosse narrado, seria com a
voz de Zé Ramalho. Este já teve sua música associada com o absurdo, com o
onírico, com o escatológico. As canções A Terceira Lâmina e Canção Agalopada
exemplificam bem isso. Daí André não poder ter feito escolha mais acertada. Ao
interpretar A Última Nau, Zé Ramalho torna-a próxima de suas próprias
composições apocalípitico-surrealistas. Tal aproximação pode ser melhor
evidenciada com a última estrofe do poema, a qual traz a indefinição própria do
mito. O apóstolo Marcos, reproduzindo as palavras do próprio Cristo sobre o fim
dos tempos, registra que “quanto, porém, ao dia e à hora, ninguém sabe, nem os
anjos no céu nem o Filho, senão o Pai.” (MC 13.32) Numa das canções de Zé
Ramalho, Ave de Prata, caracterizada pela presença de um tempo indefinido,
encontramos: “E nesse momento, tudo deve calar/ numa história que venha do
povo/ O juízo final.” Ademais, em Canção Agalopada, encontramos: “Foi um tempo
que o tempo não esquece/ Que os trovões eram roucos de se ouvir/ Todo o céu
começou a se abrir/ Numa fenda de fogo que aparece”. O momento e o tempo
citados por Zé Ramalho são indeterminados, de acordo com o desfecho do poema de
Pessoa.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mystérío.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
A música de André Luiz de
Oliveira é realmente bela e merece ser apreciada, bem como a poesia do mais
importante poeta da língua portuguesa.
*Texto produzido por Sérgio Santos como atividade avaliativa da
disciplina Literatura Portuguesa III, ministrada pelo prof. Márcio de Lima
Dantas (UFRN, 2004).
Excelente trabalho.
ResponderExcluirUm abraço da Zona Sul de Natal!