Zé
Modesto, 34 anos, paulistano, formado em História pela Universidade de São
Paulo atua há doze anos como professor. Entende-se melhor na vida quando
umbricado em música e poesia. Amante, apreciador e estudioso da canção
brasileira, tendo os choros antigos, os sambas e as serestas desde muito cedo
tomado conta de seus ouvidos, soando diariamente ora do clarinete de seu pai,
ora do violão tenor do velho Duca, avô querido, fazedor de quadrinhas, a quem
dedicou o CD de estréia "Esteio".
É
a simplicidade que Zé Modesto persegue na arte. Dessa busca vem o gosto pelos
cantos de trabalho, benditos, ladainhas, capoeiras e folias. Daí o encontro com
as Adélias, Guimarães e Bitucas, esteios do universo mineiro, principal
manancial de sua criação, que mistura com os sambas das antigas e as
tonalidades urbanas indissociáveis de sua alma paulistana.
Um vôo panorâmico
sobre Esteio
por Cristiane
Fernandes
ESTEIO
está cheio de estórias... à maneira mineira de Guimarães Rosa, presença poética
marcante, especialmente em Diadorando. Composta em tons roseanos, expressa o
garimpeiro cuidadoso das palavras nos Campos Gerais da poesia. É lá que este
contador de histórias e estórias busca aprumar sua vista. Além de bela paisagem
para os olhos, a canção, na voz da cantora Ceumar, encanta a alma com
delicadeza e suavidade. É assim, em meio a mais pura poesia, que iniciamos
nossa travessia por um sertão musical que une com maestria desvãos de um chão
árido e veredas límpidas, margeadas por altos buritis em busca de céu e luz.
Em
ESTEIO, o sertão é vasto e sem fronteiras. Ao lado da prosa poética tipicamente
mineira, encontramos também o lirismo ibérico melodioso, embalando Estrada,
canção interpretada pela cantora Anunciação. O tempo bom de colheita cantado em
Estrada, em nada destoa do tempo de lamentos, cantado em Deserto, por Renato
Braz, vencedor do último Prêmio Visa, versão cantores. A textura grave da voz
irretocável de Renato e a melodia incidental Cantemos a Jesus, de tradição
popular católica, tornam macia a caminhada deserto adentro.
Em
seu profundo mergulho no interior do sertão humano, Zé Modesto colhe luz e breu
e transforma um e outro em poesia. Não são apenas estórias a habitar Esteio. A
estrada aqui é iluminada também por Estrelas, samba-canção composta a partir de
um poema de Ernesto Cardenal, poeta nicaraguense. Com Estrelas, passamos da
poeira do sertão à poeira dos Cânticos Cósmicos, dos morros das gerais aos
morros cariocas.
O
samba de raiz dos mestres Elton Medeiros e Paulinho da Viola, sopra seus ventos
em Do Amor, com predominância da poesia metalingüística. Zé Modesto propõe-nos
uma reflexão sobre a arte que ordena o caos profundo da existência e também
sobre o amor guardado na memória retinta das cores. E já que estamos falando de
amor, deitemos olhos e ouvidos sobre Prece, interpretada por Dalci, cantor e
compositor de extrema sensibilidade e requinte musical. A reiteração melódica e
poética da canção insere-nos em outros espaços. Em Prece, somos levados aos
vãos dos degredos e, desorientados, navegamos por leitos densos. A
interpretação deste novo cantor convida-nos à rara possibilidade de reverenciar
o silêncio, condição indispensável para fazer brotar essências. Este tom
reflexivo aprofunda-se ainda em Calendário, parceria com o ator e poeta Gero
Camilo e em O ciclo da lua cujo arranjo de Chico Saraiva (vencedor do último
Prêmio Visa, versão compositores) e o veludo da voz de Juçara Marçal dialogam
de forma ímpar.
Finalizando
o cd, temos o lado eclético do compositor na variedade rítmica. O anel do
cirandeiro é um xote que conta com a participação especial de Lula Alencar na
sanfona, com a vivaz interpretação de Marcelo Pretto, do grupo A Barca, e de
Ana Leite, cantora que alia a técnica vocal à espiritualidade própria da música
popular brasileira. Tem jeito não, uma rumba-brasileira iluminada pelo trombone
de Alê Arruda, trata com leveza e ironia temas contemporâneos, abrindo caminho,
com seu humor irreverente, à linguagem lúdica de Camisa Vermelha, abrilhantada
pelas sutilezas da interpretação do cantor Rubi. “Desilhados” e em companhia de
um lalaiá entoado em coro, finalizamos o cd com o que na verdade é o início de
um sorriso aberto, daqueles raros.
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